Inês Zuber, João Ferreira e Miguel Viegas
sobre a crise dos migrantes

A União Europeia revela<br>a sua verdadeira face desumana

Carlos Nabais (texto)
Jorge Caria (fotos)

As condições degradantes a que são sujeitas largas centenas de milhares de pessoas, que entram em países da União Europeia fugindo à guerra ou à fome, têm sido denunciadas por diferentes organizações Internacionais. No Parlamento Europeu, o Grupo Confederal da Esquerda Unitária Europeia/Esquerda Verde Nórdica, no qual o PCP se integra, tem-se destacado na defesa dos direitos dos migrantes, promovendo, entre outras iniciativas, deslocações a centros de «acolhimento» e de trânsito de migrantes. Em conversa com o «Avante!», os três deputados do PCP no Parlamento Europeu falam-nos das impressões que recolheram dessas visitas e apontam as causas de uma das maiores tragédias humanas da actualidade.

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Avante! – O actual fluxo migratório parece distinguir-se dos anteriores, quer pela forte presença de refugiados, quer pela própria composição etária, social e de género. É exacto afirmar que que a presente vaga de migrantes é consequência directa das intervenções militares das potências ocidentais, nomeadamente na Síria?

João Ferreira (JF) – Sim, acho que se pode dizer isso. Estamos claramente perante pessoas que fogem da guerra, e entre elas há gente de todas as idades e estratos sociais. Este grupo é actualmente constituído essencialmente por sírios, afegãos e iraquianos. Mas não se pode ignorar todos os outros, oriundos de variadíssimos países, que procuram alcançar a Europa por motivos socioeconómicos. Isto deve ser sublinhado, porque se assiste neste momento a uma tentativa por parte da União Europeia de distinguir «refugiados» de «migrantes», barrando a entrada aos segundos e condicionando o reconhecimento do direito de asilo a partir de um critério de nacionalidade, o que é inaceitável e contrário ao próprio direito internacional.


Av! – Uns podem entrar, os outros não, é isso?

JF – Sim, os sírios, iraquianos e afegãos são admitidos, os restantes ou são barrados ou começam a ser expulsos.

Miguel Viegas – Quando se privam pessoas das condições mínimas para levar uma vida normal nos seus países, distinções com base na nacionalidade são inadmissíveis. Nós devemos insistir na ideia de que são todos seres humanos, fogem se não da guerra aberta, de outras intervenções imperialistas, como é o caso da Eritreia ou do Corno de África. Trata-se no fundo de guerras fomentadas pelo imperialismo para garantir a sua influência em regiões que têm reservas de minério, de petróleo, de gás natural.


Av! – Foram as potências ocidentais que provocaram esses fluxos humanos e agora fecham-lhes as portas…

Inês Zuber – É inegável que o fenómeno migratório em direcção à Europa é uma consequência das recentes intervenções ocidentais. Mas penso que é importante desmontarmos a ideia de que a União Europeia está a ser «invadida» por uma «vaga» de migrantes. Sabemos que os fluxos de migrantes no mundo são hoje enormes, mas a União Europeia está longe de ser o principal destino. Países como o Líbano, a Turquia, a Jordânia ou o Paquistão estão a receber muito mais migrantes do que a União Europeia. No Líbano, por exemplo, o número de refugiados já representa mais de 20 por cento da população total. Ora os migrantes na União Europeia não chegam sequer a um por cento da população. Isto porque. As pessoas só conseguem penetrar no espaço da UE depois de sacrifícios enormes e de terem pago elevadas somas a redes de traficantes, que são alimentadas precisamente pelas políticas repressivas da UE.

 

Av! – De facto, só o Líbano acolheu 1,2 milhões de refugiados sírios, segundo dados da ONU…

MV – Isso sem falar da população palestiniana que já lá estava…

IZ – A Líbia também era um dos países que tradicionalmente acolhia migrantes. Tinha uma economia próspera, onde havia trabalho, e as pessoas emigravam para lá. Após a intervenção ocidental, os imigrantes foram os primeiros a serem expulsos pelos mercenários.

MV – É significativo que a União Europeia tenha optado por pagar mais de três mil milhões de euros à Turquia para o financiamento de campos de refugiados, procurando evitar que essas pessoas entrem no continente europeu.

 

Av! – Essa observação leva-nos para a questão da falta de meios para acolher refugiados, que alguns países alegam, ao mesmo tempo que não faltam verbas para pagar à Turquia, erguer vedações e militarizar as fronteiras.

IZ – Sobre a questão dos fundos, verifica-se de facto que há mais dinheiro para o controlo das fronteiras, para a repressão e policiamento do que para o asilo. Concretamente, o Fundo para a Segurança Interna irá dispor de 1280 milhões de euros para a gestão das fronteiras entre 2014 e 2020. Já a verba dada aos estados para ajuda humanitária foi de 41,8 milhões de euros em 2015 e será de 55 milhões em 2016. A diferença é enorme. Aliás, quem vai aos campos não encontra lá equipas do Fundo para o Asilo, a Migração e a Integração, mas sim forças policiais e da Frontex, cuja primeira missão é a identificação e a realização do inquérito.

JF – A UE tem feito uma grande propaganda em torno dos recursos que mobilizou para fazer face à crise dos refugiados. Porém, como a Inês referiu, mais de dois terços desses recursos não são para o acolhimento, mas para o policiamento de fronteiras ou para a expulsão dos migrantes.

MV – Deve-se acrescentar que os mecanismos de mobilização de verbas foram esgotados, em virtude de os estados se terem recusado em contribuir com a sua parte. Isto significa que para o ano a UE já não vai dispor desses recursos.

JF – A Cimeira de Valeta sobre migração, entre a UE e países africanos, [Novembro de 2015, Malta] é mais um exemplo de hipocrisia. Apresentada como uma forma de resolver na origem as causas da migração, decidiu criar um fundo de mil milhões de euros para financiar a cooperação para o desenvolvimento para toda a África. Uma parte dessa verba foi desviada de programas de cooperação pré-existentes, mas apesar disso, uma fatia significativa não será aplicada na resolução dos problemas desses países, mas sim no reforço do controlo das suas fronteiras com a UE. Para terem direito à dita ajuda ao desenvolvimento, esses países devem ser cooperantes no controlo das suas fronteiras, dos movimentos internos e com a política externa da UE. Ou seja, estão a ser chantageados. 

As condições degradantes
visam desincentivar migrantes


Av! – Estiveram este ano em centros de acolhimento de migrantes em várias regiões do continente europeu. Fala-se de condições degradantes e temos visto imagens que o testemunham, nomeadamente em Calais, na França, onde milhares de pessoas vivem num acampamento improvisado, a que chamam «A selva». Encontraram outros casos?

MV – O Município de Calais, onde estive recentemente, foi condenado por tribunais franceses por não garantir os direitos mínimos às populações que acorrem ao campo de refugiados. Estamos a falar de seis mil pessoas. Os voluntários que estão no local não compreendem como é que se desbloqueiam verbas tão importantes para campos na Turquia e não se asseguram condições básicas de sobrevivência às pessoas que estão ali, no centro da Europa. Para além da sua localização, este campo resulta de um acordo sinistro entre a França e o Reino Unido. Ou seja, é o Reino Unido que está a pagar à França para suster e evitar que aquelas pessoas possam atravessar o Canal da Mancha. Com uma particularidade: muitos dos que ali estão preenchem todos os requisitos para poder pedir asilo no Reino Unido e só não podem fazer porque não conseguem alcançar o território britânico. Calais tem ainda a especificidade de estar actualmente sob gestão da direita, onde a extrema-direita, o partido de Le Pen, tem uma influência crescente. Este novo poder tem cortado todas as ajudas, tem dificultado ao máximo todas as acções de solidariedade, a distribuição de refeições e roupa ou a construção de abrigos, não só com o objectivo de aumentar a pressão sobre os migrantes, mas também de fomentar a hostilidade por parte da população.

 

Av! – Parece um círculo vicioso em que a negação de condições mínimas a seres humanos os transforma em elementos perturbadores, suscitando sentimentos racistas e xenófobos nas comunidades.

MV – Dou outro exemplo do que se passa em Calais: neste momento por decisão da Câmara, os migrantes estão impedidos de frequentar a piscina, a biblioteca e outros equipamentos públicos, porque lhes exigem um certificado de residência à entrada. Isto é o início de uma espécie de regime de apartheid!

 

Av! – O fomento desse ambiente racista é uma das razões da subida eleitoral da extrema-direita em França?

MV – Sem dúvida. Realizámos uma reunião com as organizações que estão no terreno e todas reconheceram que a única força política que toma posições de verdadeira solidariedade para com os migrantes é o Partido Comunista. Infelizmente, o PCF tem sido penalizado por isso. O município de Calais foi governado pelo PCF entre 1971 e 2008. O último presidente comunista, Jacky Hénin, foi também deputado no nosso grupo. Mas hoje as culpas pela existência daquele acampamento são lançadas sobre o PCF.

IZ – Em Lampedusa e na Sicília, onde estive há poucos meses, quem gere os campos de migrantes é a mafia siciliana. Na Sicília há um centro com cinco mil pessoas, o que é gigantesco. Lampedusa é uma ilha minúscula onde os migrantes ficam retidos durante dias e dias. Vagueiam pelas ruas, sem nada para fazer. Os centros apenas fornecem uma alimentação deficiente. Não há um médico, um assistente social, nem nada para fazer. São organizações internacionais que levam médicos e outros apoios. Trata-se no fundo de campos de detenção e não de centros de acolhimento. As pessoas podem ficar ali um ou dois anos à espera do asilo ou da expulsão da UE.

JF – Os campos que visitei na rota dos Balcãs são locais de passagem e por isso diferentes dos exemplos já aqui dados. Não obstante, um dos aspectos mais salta à vista é a falta de condições mínimas, de higiene, conforto, recuperação, etc.

 

Estamos a falar de mulheres, crianças e idosos que percorreram longas distâncias a pé…

JF – Sim, milhares de quilómetros, ao longo de vários dias. Alguns fazem a travessia do Mar Egeu e chegam a terra devastados. (Grécia, Macedónia, Sérvia, Croácia, Eslovénia, Áustria Alemanha). Depois há os evitam a travessia marítima, tendo de atravessar toda a Bulgária a pé. O nosso grupo denunciou vários abusos cometidos contra migrantes, sobretudo na Bulgária, e já pediu a realização de um debate sobre o assunto. Falamos de espancamentos por parte da polícia, ataques com cães, prisões ilegais, perseguições, extorsões, etc. Entre a Sérvia e a Croácia o trânsito foi facilitado graças a uma acordo entre os dois países, que se traduz na criação de uma rota legal e segura. Os migrantes embarcam na fronteira da Sérvia num comboio croata que os leva à fronteira com a Eslovénia. Isto mostra que havendo vontade política é possível organizar essas rotas legais seguras e libertar os migrantes dos traficantes, tal como temos defendido, mas infelizmente só se conhece este troço.

Entretanto a situação na rota dos Balcãs alterou-se substancialmente com a introdução da barragem dos migrantes. Segundo relatos que nos chegaram, as pessoas impedidas de prosseguir são metidas à força em autocarros em direcção a Atenas. Mas enquanto uns são recambiados, outros chegam todos os dias à fronteira com a Macedónia.

MV – A criação de más condições não é acidental, mas propositada. Tudo está a ser feito para desincentivar a vinda de migrantes. Não somos nós que o dizemos, está escrito em documentos. A ideia é não dar indicações positivas que possam constituir um chamariz. Mas esta táctica não resulta. Porquê? Porque o que determina a vaga de migrantes não são os sinais da União Europeia, mas as bombas que caem nos respectivos países. Este é que é o factor determinante.

 

Av! – Sendo um facto que os países da União Europeia não estão a cumprir as normas internacionais a respeito dos refugiados, seria viável interpor uma acção contra a UE em tribunais internacionais?

JF – Já houve queixas contra a intervenção da Frontex sobre migrantes. A resposta do tribunal foi que não havia um mecanismo formal de queixa contra aquela agência.

IZ – Apresentámos uma pergunta sobre rotas legais à Comissão Europeia e a resposta foi que existe o mecanismo da recolocação, que só pode servir àqueles que conseguem chegar a território da UE. O problema é que muitos morrem na viagem precisamente porque a UE não está disposta a criar as tais rotas legais e seguras. 

Os «valores» da UE
estão a ruir um a um

Av! – Onde estão os ditos «valores» da União Europeia?

JF – Estão a ruir pela base. Os ditos grandes princípios fundadores da UE foram caindo um a um. Foi o princípio da solidariedade na crise do euro, é agora o princípio da livre circulação; hoje há muros e cercas de arame farpado erguidas nas fronteiras entre estados-membros! Caíram os grandes princípios e valores e revelou-se a desumanidade e o carácter retrógrado e reaccionário do próprio processo de integração. Esta política migratória repressiva, que criminaliza os migrantes, selectiva e desumana é uma expressão disso mesmo.

 

No parlamento europeu há espaço para promover a denúncia destas políticas?

Podemos dizer que o nosso grupo tem tido um papel importante nisso.

 

Mas não é possível alargar a convergência a outros grupos, por exemplo, os sociais-democratas?

JF – Estas políticas têm sido caucionadas pelo grande consenso entre a direita e a social-democracia.

IZ – Essa é a grande contradição da social-democracia. Apesar do seu discurso social, têm sempre apoiado as políticas da direita.


Ainda há dias David Cameron anunciou que suspenderá o pagamento de subsídios sociais a todos os imigrantes, incluindo os provenientes de países da União Europeia. A acumulação de contradições nesta e noutras matérias não será o prenúncio da desagregação da União Europeia?

JF – É o que temos sempre dito. Este processo está pejado de contradições que são insolúveis, a UE não é reformável e portanto terá de cair, também sob a acção da luta dos trabalhadores e dos povos, e será sobre as suas ruínas que nós vamos edificar um outro projecto de cooperação entre estados e povos.

 



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